“Ele mora ali, naquela árvore. É ali que fica o ninho. É um gavião… e está sempre sobrevoando por aqui. Essa é a sua área, seu habitat.”
Assim se aproximou de mim Seu Júlio, garçom de um renomado restaurante de São Paulo. Eu estava observando da janela a paisagem verde que contrasta com o amarelo, cinza e marrom da paleta que predomina no Centro de São Paulo. Entre prédios que guardam a história da arquitetura de décadas da metrópole, é possível ver a manifestação de quem ainda domina por ali, mesmo depois de tanta interferência urbana. Os pássaros, como esse gavião, são personagens frequentes de observadores atentos como o Seu Júlio.
Com esse mote, iniciamos um diálogo que se estendeu por quase uma hora, enquanto eu aguardava a pauta que iria cobrir. Ele me cutucou e perguntou meu nome. O resto é história: dele, minha e do mundo. Falamos sobre quase tudo que você poderia imaginar: política, religião, filmes, notícias, física quântica, teorias da conspiração e assuntos que demandam certa complexidade e profundidade intelectual.
Seu Júlio havia chegado a São Paulo cerca de um ano atrás, por conta da faculdade da filha. Veio do Rio de Janeiro (seu sotaque chiado não negava) com a esposa. Contou brevemente dos lugares onde trabalhou, pois o que nos interessava era dar vazão a essa nítida similaridade que tínhamos por assuntos culturais. Dava para notar os olhares curiosos dos outros garçons para nós, que nitidamente indagavam: “O que tanto o Júlio conversa com essa moça?” Um deles até me abordou depois, achando que eu estava me sentindo importunada. Na verdade, estava sentindo tanto prazer na conversa que ela só foi interrompida pelo fim do turno do Seu Júlio.
Ele se despediu afirmando “o quanto sentia falta de conversas assim”, e que pessoas para isso eram raras. Compreendo que, para ele, a raridade é maior. Reconheço a nossa diferença das bolhas em que vivemos. Mas como sou uma “furadora de bolhas oficial” – e estou sempre na busca de me conectar com quem é de diferentes tribos e círculos socioeconômicos dos que habito -, sei que isso é algo raro de acontecer. Para mim, nem tanto. No meu lugar de privilégio, encontro pessoas com um nível intelectual e de interesses parecidos, consequência de habitar e acessar lugares que fomentam isso. Mas sabemos que nesses mesmos lugares há inúmeros energúmenos que só abrem a boca para falar futilidades.
Pois bem. É preciso falar da deliciosa surpresa que é encontrar alguém que ocupa um lugar aparentemente casual, simples no sistema com tamanha sabedoria, repertório cultural e curiosidade intelectual. Seu Júlio, quando não está trabalhando, está lendo, ouvindo e assistindo a vídeos para se manter informado sobre o mundo – no passado e no presente -, para tentar decifrar o futuro. Eis que seu espírito nobre confirma a teoria de que nunca sabemos de onde surgirá alguém que desafia os saberes e questiona o mundo ao seu redor. Isso independe de cor, raça, condição social, econômica e cultural.
Nos lugares mais inusitados se escondem belas e raras joias. Inclusive, geralmente, são elas que fazem o mundo ainda ter esperança de uma luz no fim do túnel em que nos encontramos, parando de estação em estação, nesse vagão que é a bolha de cada um. O trem da vida surpreende a quem tem a coragem e a humildade de desafiar as máscaras sociais, postas por aqueles que preferem se esconder a buscar. Assim, o gavião e Seu Júlio sobrevoam cidades, árvores, balcões e mesas com maestria, elegância e soberania na arte de observar e capturar presas – sendo as do garçom, ouvintes curiosos como eu.
_
Esse texto é 100% autoral. Sua correção foi feita pelo ChatGPT.